terça-feira, 16 de novembro de 2021

Carta aos Adultos

 E ao tempo que eu não vinha aqui, e as dezenas de ideias para escrever que deixei escapar...

Ainda assim, há um tempo para tudo, e acho que uma iluminação que me surgiu ontem agrega muita coisa que queria ter escrito nos últimos tempos.


Carta aos Adultos


Ser criança é difícil para caramba. Vivem no seu mundo, com uma energia desmesurada, e levam constantemente com convenções, ordens e humores dos adultos.

Não me sinto uma super mãe, mas sinto-me mesmo a melhor mãe do mundo para a minha filha.

Conversamos muito. Desde que nasceu que conversamos bastante. E não há nada melhor do que boa comunicação para garantirmos que estamos em paz connosco e com quem nos rodeia. Pimba. Só aqui, primeira lição para os adultos, que tantos problemas de comunicação têm (eu incluída!).

Depois, damos por "nós", adultos, a construir-lhes e a fazê-las acreditar num mundo que não existe. Inventamos teorias, desculpas e mentirinhas, para que elas não se assustem, não se magoem, não façam perguntas inconvenientes, etc.

Cada vez que me vejo a ir por esse caminho, faço inversão de marcha e falo preto no branco.

Acho que as crianças devem saber como funciona o mundo que as rodeia, com a informação certa q.b. para a idade. Sem desmanchar toda a fantasia mas sem criar ideias fantasiosas que nos saiam caras mais tarde. E nisto posso incluir, literalmente, o mundo. Grande redundância. Mas não sei dizê-lo de outra forma.

Exemplos vários: 

- A educadora vai embora. Ok. Explicamos que vai ter outras oportunidades, outro trabalho, mudar de cidade, etc. Como pode acontecer com qualquer um de nós. Sem dramas e sem mentiras que nos façam ouvir o «quando é que volta?». Esta questão aconteceu lá em casa, e depois da explicação a pergunta foi: «E vai voltar?» e a resposta foi simple «Não, filha. Vais ter uma nova, que te vai ensinar coisas novas e trazer experiências diferentes.» Assunto arrumado com sucesso e prova superada!

- De onde saem os bebés? Pela barriga, como foi o caso lá em casa, ou pelo «bibi», apelido trazido da escola pela criança, que adotámos sem stress. Viu a cicatriz, percebeu no seu corpo que tem um buraquinho para o xixi e outro, para saírem bebés, ou sangue, quando for crescida e não houver bebés. 

- Esta pergunta levou a outra: como é que aparecem os bebés? Claaaaro que as pernas tremeram e veio um suorzinho. Como explicar a uma miúda de 4 anos sem mentir e sem demasiada informação? «Bom, quando dois adultos gostam muito um do outro namoram, e quando estão a namorar, bem juntinhos, o homem dá uma espécie de semente à mulher, e daí pode nascer um bebé». Prova superada com MUITO SUCESSO porque não veio a pergunta seguinte: «Como?». Mas sabe que a semente vem pela pilinha, e entre na «barriga» da mulher. Informação q.b. para não achar que se compram, que se encomenda, que é uma semente que vai pelo umbigo, etc.

- E passando do nascimento à morte, a clarificação do conceito e o facto de ser a única certeza que temos na vida. Não há filme da Disney que não tenha mortes ou órfãos. E lá em casa o consumo da Disney é quase diário e é muito incentivado. Então veio a pergunta: «Oh mãe, quando morremos ficamos a dormir e passado muito tempo acordamos?». Não filha, quando morremos, é como se ficássemos a dormir para sempre. Mas o nosso coração pára de bater e deixamos de respirar. Nunca mais vivemos. Deixamos de existir e de sermos vistos. OK. A miúda lá andou uns dias a pedir que não morrêssemos, e a contar os «velhinhos» todos que conhecia com medo que algum desaparecesse. Depois de repetir não sei quantos filmes, entendeu que nem sempre morriam só os velhinhos. Às vezes dávamos por ela a ver notícias com muita atenção e perguntava quem tinha morrido, como e porquê. "Do nada", digo eu, veio o interesse pelas mortes da família. Os bisavós que não conheceu, e outros que tais. São conversa quase diária. Quer saber mais e mais sobre eles. Sabe que uns estão no cemitério - sítio onde vamos em breve para ela ver o que é como se organiza, etc. - e outros foram cremados e estão guardados em sítios especiais. Perguntou se renasciam, porque acreditava nisso. Que podiam renascer em plantas, animais ou outras pessoas. Nem eu nem o pai acreditamos nisso. Disse-lhe que se ela acreditava nisso, talvez fosse possível. Mas que eu apenas acreditava na renovação da vida. E que depois de um período difícil, triste, depois de uma perda, a vida renovava-se de alguma forma e trazia coisas boas. Ficou a olhar para mim pouco convencida. E eu fiquei a olhar para ela pouco convencida, também. Porque ela gera-se na primavera seguinte à morte do meu avô Alberto, e nasce tão generosa e palhaça quanto ele. Se isto é renovação ou renascimento, eu já não sei. 

- Por fim, a polémica do fim-de-semana sobre as crianças só «falarem brasileiro». Desde que a miúda nasceu que a nossa família tem uma ligação direta ao Brasil. Eu sempre fui fascinada, e desde que o meu irmão foi viver para lá que se há forma de matar saudades dele e daquele país é ouvindo música brasileiro, lendo poetas brasileiros, consumindo muito Brasil, até na alimentação. Então, quando ela começa a comunicar, pouco depois, vem o primo nascido lá, que vive lá e que, por muito português que o pai seja, é 200% brasileiro. Vem o Luccas Neto, vem a Maria Clara, vem o canal da Nastya traduzido, etc. etc. etc. Vem o funk que ela gosta de ouvir, Anitta e afins. Não a protejo de nada. Ela vem influenciada da escola ou da irmã. De alguma forma eles chegam a nomes e músicas que nem sabíamos que existiam. A seguir também ouve Caetano Veloso e dança Gilberto Gil. E canta Melim, Ivete e outros. Sabe que geladeira é frigorífico, mamadeira é biberão, banheiro é casa-de-banho. Sabe que a comida é gostosa e que uma coisa pode ser «muito legal!». Sabe que brinca quando fala com sotaque, e pica o pai quando, propositadamente, usa essas palavras de forma fluente. O consumo desses canais e músicas só lhe trouxe mais vocabulário e alegria, fantasia, imaginação. A mediação entre o que eles consomem e o dia-a-dia é fundamental e não fundamentalista. Não entendo sequer como é notícia a questão das crianças «só falarem brasileiro». Porque: 1. brasileiro é um cidadão nascido no Brasil; 2. a notícia deveria ser esta falta de comunicação e de mediação de quem cria e educa as crianças. Isso sim, deveria ser a notícia.

Bom, a carta vai longa, e todos perdemos mais tempo a ler posts rápidos nas redes do que longas linhas de texto. Ainda por cima, sinto que a escrevi do alto de um pedestal, e peço desculpa aos mais sensíveis por isso. Mas isto vale o que vale, e às vezes oiço tantos pais a queixarem-se que não sabem como lidar, como fazer, como responder, como explicar, que me pergunto que mundo criaram para as suas crianças. Porque eu só conheço este mundo, aquele em que eu vivo com a minha filha. 

Se não querem estupidificar as crianças, nem fazê-las passar por situações embaraçosas, não se embaracem também, e comuniquem. 

E por fim, deixo aqui um louvor a quem acompanha a minha filha na escola, um especial à Lili, educadora, que lhes responde a tudo, que lhes mostra como as coisas funciona e as torna crianças atentas, informadas e perspicazes. 

Até daqui a uns meses, eventualmente. 

✌❤


2 comentários:

  1. Belíssimo texto minha querida. Vejo que tens muito jeito para a prosa. Podes continuar a dar asas à tua fértil imaginação. GOSTEI muito, beijinhos.

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  2. Sempre bem, Mariana! Continuo a ter orgulho em ti. 👏❤️

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